
O que é “pensamento catedral”, uma das grandes lições de 2020, segundo o filósofo Roman Krznaric
https://www.bbc.com/ – O filósofo Roman Krznarice falou à BBC Mundo sobre “a enorme espontaneidade e conexão emocional” que encontrou na América Latina.
Ainda que ele tenha visitado vários países da região ao longo dos anos, conviver com indígenas na Guatemala o marcou profundamente.
Segundo ele, foi lá que teve “uma visão completamente diferente da vida”, em grande parte graças “ao incrível vínculo que eles têm com a terra”.
“Eu acho que a conexão com o mundo vivo que você encontra na cultura maia é realmente valiosa no meio da cultura de consumo hiperurbano atual”.
A ideia de que “precisamos nos reconectar com a terra e com os longos ciclos do tempo” o cativou.
E é justamente em seu livro The Good Ancestor (O bom ancestral), que Krznaric, que já ensinou sociologia e política na Universidade de Cambridge, denuncia que vivemos na “era da tirania do agora”, que há um
“curto-prazismo frenético” na raiz das crises que enfrentamos.
Mas ele acredita que temos “talentos exclusivamente humanos” para combatê-lo. É por isso que nos falou do “pensamento catedral”, o que ele chama de “rebeldes do tempo” e movimentos inspiradores em todo o mundo, como o “design do futuro” no Japão.
A seguir, você poderá ver um trecho da entrevista que o pensador deu à BBC Mundo.
Por que você acha que o curto-prazismo se tornou uma constante na forma como vivemos?
Hoje, quando as pessoas falam sobre curto-prazismo, imediatamente pensamos que nossos telefones celulares são o problema. Nós os revisamos 110 vezes por dia, estamos imersos em uma distração digital.
Mas as raízes são muito mais antigas. Na Europa, remonta ao relógio medieval, quando o tempo começou a ser medido e dividido em pequenas frações.
No século 14, os primeiros relógios mediam cada hora. No século 18, já mediam cada minuto e no século 19, tinham o ponteiro de segundos. Isso fez o tempo acelerar e agora temos negociações de ações feitas em nanossegundos.
Uma das razões pelas quais o curto-prazismo é um grande problema agora é porque percebemos que no século 21 temos muitos desafios de longo prazo: há mudança climática e perda de biodiversidade; novas tecnologias como inteligência artificial e bioterrorismo, por exemplo.
Existem muitas questões que requerem reflexão a longo prazo, e a pandemia é uma delas.
Sabemos que os países que criaram planos de pandemia de longo prazo lidaram com o vírus de forma mais eficaz do que aqueles que não o fizeram como por exemplo, os Estados Unidos ou o Brasil.
Essa é uma das razões pelas quais sabemos que o planejamento de longo prazo importa agora mais do que nunca.
Tem sido interessante ver o que foi dito sobre o meu novo livro: quantas pessoas da área médica ou da saúde pública disseram que não há planejamento de longo prazo suficiente nesse setor, seja no Serviço Nacional de Saúde no Reino Unido ou nos sistemas de saúde em outros países.
Acho que a pandemia está nos fazendo ver problemas a curto prazo, mas precisamos criar resiliência em nossos sistemas de saúde para planejar nossa resposta às pandemias que podem vir.
E já estamos começando a fazer com que cada vez mais governos percebam o que precisam, não apenas em resposta a algo como a covid-19, mas em termos de planejamento de longo prazo com outras questões, como a crise climática.
Em seu livro, você fala sobre a importância do “pensamento catedral”. Em que consiste e como ele pode ser desenvolvido?
O pensamento catedral é a capacidade de conceber e planejar projetos com um horizonte muito amplo, talvez décadas ou séculos à frente e, claro, baseado na ideia de catedrais medievais. Na Europa, quando as pessoas estavam começando a construí-las já sabiam que não as veriam concluídas no decorrer de suas vidas.
É fazer algo com uma visão de muito longo prazo. Os seres humanos têm sido muito bons nesse tipo de pensamento, muito mais do que imaginamos.
Essa forma de pensar possibilitou construir a Grande Muralha da China ou viajar ao espaço, construir Machu Picchu ou Brasília: não era atuar apenas para o aqui e o agora.
Acho que é uma habilidade que podemos desenvolver. As empresas podem fazer isso para criar planos de sustentabilidade de 100 anos. Na verdade, muitos já estão fazendo isso e os governos também podem fazê-lo.
Vou dar um exemplo muito específico: você se lembra do acidente nuclear no Japão depois do terremoto e tsunami de 2011?
A usina de Fukushima entrou em colapso e causou um desastre, mas havia outra usina chamada Onagawa que foi ainda mais atingida pelo tsunami, mas sobreviveu porque o engenheiro que a projetou a construiu cerca de 30 metros mais alta do que realmente era necessário.
Ele sabia que um tsunami poderia acontecer, embora na época talvez não houvesse uma grande possibilidade. Esse é um pensamento de longo prazo, é o tipo de pensamento de que precisamos.
Algumas cidades europeias, como Amsterdã, planejam não ter carros movidos a combustível fóssil em suas ruas depois de 2030, eles querem uma economia 100% circular a partir de 2050.
Quais são as implicações da visão de curto-prazismo não apenas de uma perspectiva pessoal, mas para a democracia como um sistema?
Acredito que haja um problema terrível com a democracia: não damos direitos ou voz representativa às gerações futuras.
Sabemos que nossos políticos mal conseguem ver além da próxima eleição ou da última manchete. Mas também sabemos que nossas ações estão tendo consequências para todas as futuras gerações.
Percebi isso em parte porque nos anos 90 trabalhei como cientista político e, embora fosse aparentemente um especialista em democracia, nunca me ocorreu que estávamos privando de direitos aquelas gerações às quais não demos lugar, mesmo quando eles foram afetados por nossas ações.
Existem alguns movimentos realmente inspiradores em diferentes partes do mundo que estão tentando abrir espaço para as próximas gerações.
No meu livro The Good Ancester, escrevi sobre um movimento no Japão denominado “design do futuro”, que se baseia em uma ideia praticada pelas comunidades aborígenes americanas onde o impacto de uma decisão em sete gerações, é considerado no processo de tomada de decisão gerações.
No Japão, os habitantes de uma determinada localidade são convidados a discutir e fazer planos para aquele lugar.
Eles geralmente são divididos em dois grupos: para um é dito que eles são os residentes do presente e para a outra metade é dito que eles são os habitantes que viverão lá a partir do ano 2060.
Um dos resultados surpreendentes é que os residentes que se imaginam a partir de 2060 apresentam planos muito mais radicais e transformadores para suas cidades, seja sobre saúde, investimento ou ação contra as mudanças climáticas.
Trata-se de um movimento popular que se espalhou por todo o país. Muitas cidades progressistas em outras partes do mundo podem adotar esse mecanismo para revitalizar a democracia, para reinventá-la, para dar voz às gerações futuras usando a imaginação.
O que você descobriu ao escrever seu livro The Good Ancester?
O que realmente me surpreendeu é que comecei a perceber que existe um movimento que chamo de rebeldes do tempo em diferentes partes do mundo. São pessoas que se dedicam ao pensamento de longo prazo e à justiça intergeracional.
Eu não sabia que havia tantos projetos incríveis ao redor do mundo. Por exemplo, na Escócia, a artista Katie Paterson criou um projeto de arte chamado Future Library, em que a cada ano, durante 100 anos, um famoso autor doa um livro que não será lido até o ano de 2114.
Quando este ano chegar, os 100 livros serão impressos em papel feito com mil árvores plantadas em uma floresta nos arredores de Oslo. É como um presente para o futuro.
Há também o silo mundial de sementes no Círculo Polar Ártico que busca armazenar milhões de sementes dentro de um abrigo rochoso indestrutível, projetado para durar 1.000 anos. O objetivo é preservar a biodiversidade vegetal do planeta.
E há outros movimentos como o Fridays for Future (Sextas-feiras para o futuro).
Trata-se de pensar a longo prazo, sobre – de certa forma – ser um bom ancestral.
Tudo isso me dá uma sensação de esperança. Embora eu saiba que estamos caminhando para três ou quatro graus de aquecimento global e entre um e dois metros de elevação do nível do mar até 2100, também vejo esses movimentos incríveis de desenvolvimento e outros legais que buscam dar direitos às pessoas do futuro.
Algumas pessoas veem o futuro como algo muito distante, 100 anos é muito tempo e o que acontecer então não nos afetará. Você, na verdade, disse que “tratamos o futuro como uma colônia distante”, o que isso quer dizer?
Acho que colonizamos o futuro. A humanidade, principalmente nos países ricos, trata o futuro como uma colônia distante onde podemos despejar detritos (e causar) danos ecológicos e riscos tecnológicos como se ninguém estivesse lá.
É um pouco como quando a Grã-Bretanha colonizou a Austrália nos séculos 18 e 19. Eles se basearam em uma doutrina legal agora conhecida como Terra Nelius, terra de ninguém e comportaram-se como se não existissem indígenas, más é claro que havia. É assim que tratamos o futuro, como se não houvesse ninguém.
Mas existem 7,7 bilhões de pessoas vivas hoje e só nos próximos dois séculos, dezenas de bilhões de pessoas nascerão. Como essas pessoas vão nos julgar? Entre eles estarão nossos netos e netos, seus amigos e suas comunidades.
E como eles vão olhar para nós avaliando o que fizemos ou deixamos de fazer quando tivemos a oportunidade?
Claro que acredito que na vida atual, esse futuro pode parecer muito distante. Não podemos sentir o aumento do nível do mar ou da temperatura em 2100, mas podemos usar nossa imaginação e isso é extraordinário.
Você ou eu podemos sentar e imaginar nossos filhos. Pense por exemplo, no 90º aniversário do seu filho. Ele está cercado pela família e amigos e olha pela janela. Que tipo de mundo existe? Talvez seja uma bela utopia ou um mundo em chamas.
É um experimento mental. O que ele diria para seus amigos e familiares sobre mim, o que diria sobre seu ancestral falecido, sobre o legado que deixei para ele?
E fazendo esse exercício, eu percebo, e esta é a parte que realmente importa, que você não está sozinho. Vejo que fazem parte de uma comunidade, mas também da teia do mundo dos vivos: o ar que respiramos, a comida que está disponível, a água que bebem.
Portanto, se me preocupo com a vida dele, preciso me preocupar com toda a sua vida.
Acho que muitas pessoas podem usar esse tipo de conexão familiar com o futuro como uma ponte para algo muito mais universal. Você sente que deve cuidar não apenas de seu filho e dos filhos deles, mas também de todas as crianças e do mundo do qual farão parte.
Esse experimento, na verdade, usa uma parte única do cérebro humano que pensa a longo prazo. A maioria das criaturas, animais, não tem essa capacidade de pensar tão à frente. Somos incríveis por poder fazer isso e embora seja algo extraordinário, não o usamos com muita frequência. Fazer isso pode nos motivar a agir.
Nossa tecnologia, por exemplo, é projetada para revelar nossos cérebros de curto prazo. Eu o chamo de cérebro de marshmallow, aquele que nos leva a apertar o botão “compre agora”.
Estamos prestes a dizer adeus a um ano marcado por uma pandemia que teve efeitos trágicos em milhões de pessoas. Como 2020 será lembrado nos próximos anos?
Acho que depende da perspectiva pela qual ele é olhado. Avancemos para 2120, vamos nos lembrar deste ano? Talvez não. Podemos nem lembrar disso pela pandemia, mas como mais um ano em que não agimos contra as mudanças climáticas.
Mais um ano em que não agimos para evitar a perda da biodiversidade, pode ser que a pandemia passe a ser vista como um pequeno problema, apenas um momento em que olhamos para trás na história.
Mas é claro que acho que também pode ter nos mostrado onde falhamos e o que é possível.
Vimos falhas terríveis de alguns governos em lidar com a pandemia, mas, ao mesmo tempo, vimos países que realmente aceitaram esse desafio de forma eficaz.
Embora a covid-19 tenha muito a ver com o imediato, com o presente, com uma família que perdeu um ente querido ou um governo lidando com o desemprego em massa, para mim, a covid-19 é um momento de olhar para trás e ver se aprendemos algo sobre a importância de pensar a longo prazo.
É perceber que esta não é a única pandemia que vamos experimentar. Haverá outras depois dessa, principalmente em um mundo mais globalizado.
Portanto, devemos aprender a nos tornar pensadores de catedrais. Devemos começar a planejar no longo prazo. Se não conseguirmos aprender esta lição de 2020, não teremos aprendido quase nada e isso será uma tragédia.
Mas se pudermos reconhecer que devemos ser bons ancestrais, que não podemos simplesmente só responder ao presente, que devemos pensar a longo prazo, quer estejamos falando sobre a ecologia do planeta ou riscos tecnológicos ou a próxima pandemia que pode estar no horizonte. Se fizermos isso, podemos nos chamar de bons ancestrais, os ancestrais que as gerações futuras merecem.
O que a pandemia nos revelou sobre nós mesmos?
Acho que o que ela gerou é uma revolução na empatia.
Na minha rua, por exemplo, normalmente quase não nos falávamos, mas assim que a covid-19 estourou, de repente criamos um grupo de WhatsApp com mais de 100 famílias e estamos entregando comida para pessoas vulneráveis ou idosos que não podem sair, nós compartilhamos receitas de pão e outros tipos de coisas.
E acho que você já viu isso em todo o mundo: as comunidades se uniram para ajudar umas às outras.
Os seres humanos são muito bons em crises, vamos além de apenas sentir medo, não fechamos a porta apenas para cuidar de nós mesmos.
Como aconteceu depois do 11 de setembro e durante o furacão Katrina, as comunidades geralmente trabalham muito bem juntas, e acho que o que a covid-19 mostrou de muitas maneiras é um lado muito positivo de nossa capacidade de coperar, confiar e mostrar empatia.
Junto a todas as tragédias, a covid-19 nos disse algo sobre nosso “eu” social, que somos homo empathicus (empáticos), não somente homo self-centricus (autocentrados).
Somos o mamífero mais sociável que existe e que está sendo visto.
Claro, ainda somos muito egocêntricos e gostamos de apertar o botão “compre agora” e ficar paralisados no curto prazo. Mas a covid-19 trouxe algo de bom para a mesa entre os humanos, particularmente no nível da comunidade.
Também vimos pessoas que por algum motivo não querem usar máscaras e que dizem que é seu direito não o usar. Outros que participam de manifestações para protestar contra as medidas de confinamento porque dizem que ameaçam sua liberdade.
Sim, acho que isso também nos diz algo sobre a natureza humana. O que o filósofo escocês David Hume disse no século 18: os seres humanos são pombas e cobras. Temos nossos próprios interesses, mas também somos cooperativos.
Haverá pessoas que não querem usar máscaras, que não querem fazer parte desse movimento comunitário pelo bem público.
E isso fala em parte sobre como nós, seres humanos, somos. Fala dos valores que herdamos do século XX, os valores do individualismo e uma ênfase excessiva em si mesmo e nem sempre de valores coletivos.
Mas é claro que você está certo, esse outro lado também veio à tona porque existem lados mais sombrios da natureza humana. Somos seres complexos.
Não sou utópico sobre o que o ser humano é, mas também acredito que a solidariedade que tem sido dada é muito notável.
Que tem gente que não quer usar máscara não me surpreende, o que me surpreende no bom sentido é aquela explosão, por exemplo, de todos os grupos de WhatsApp que se formaram para ajudar, da cooperação que tem ocorrido entre as pessoas .
Veja a notícia original em: https://www.bbc.com/
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